"Fujam daqui, não venham para cá, não ponham os pés
SOCORRO! COMO É QUE SE PODE VIVER ASSIM?
(CORA RÓNAI)
O GLOBO
Há um momento em "Zuzu Angel" em que a protagonista explode:
- É tão fácil andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo!
É, acho que era, sim. Não para quem tinha 20 anos e o sentimento do
mundo, claro; mas sim, havia sim uma quantidade de pessoas que tocava a
vida, pegava condução, ia ao cinema e bebia chope sem outra preocupação
que não a vida imediata, real, palpável: o salário no fim do mês, a comida
na mesa, a mulher, os filhos. Uma massa considerável de brasileiros não
estava nem aí para a desconstrução do ensino básico, a falta de liberdade
de expressão, a corrupção, as prisões, a tortura, o misterioso
desaparecimento dos seus semelhantes.
Suponho que fosse fácil andar por aí fazendo de conta que nada estava
acontecendo até porque, entre outras coisas, a imprensa, que tudo poderia
denunciar, estava sob censura. Ingênuos, achávamos que, quando a liberdade
enfim chegasse ao país, traria consigo uma sociedade mais consciente, mais
indignada, mais disposta a lutar por sua cidadania. Uma sociedade mais
justa. Naqueles tempos binários do "nós" e "eles", do "bem" e do "mal", da
"esquerda" e da "direita", tudo era simples e óbvio.
Podíamos nos dar ao luxo de ter ilusões, e de achar que o país tinha
jeito - apenas estava, temporariamente, em mãos erradas.
A ditadura acabou, os militares recolheram-se aos quartéis, a imprensa
não está mais sob censura. E o que descobrimos? Que não existe fundo no
poço. Quando achamos que chegamos lá, abre-se um alçapão antes escondido e
continuamos caindo. As denúncias cotidianas estampadas nos jornais não
escandalizam mais ninguém; já sabemos que o Brasil sempre esteve, está e
estará em mãos erradas, haja o que houver, eleja-se quem se eleger.
A essa altura, desfeitos os sonhos de juventude, bem que eu gostaria
de andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo, mesmo porque
ninguém agüenta tanta notícia desalentadora e vejo, na crônica, o espaço
onde, às vezes, se pode refazer uma vaga sensação da normalidade perdida.
Mas, ao contrário do que diz Zuzu no filme, como é difícil andar por
aí fazendo de conta que nada está acontecendo! Como é difícil ignorar a
degradação do país e da cidade, como é difícil ignorar a degradação das
pessoas!
Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está
acontecendo?!
Pois a julgar pelos resultados das pesquisas eleitorais, que apontam uma
ampla possibilidade de vitória de Lula, uma nova massa considerável de
brasileiros desencavou, em algum lugar, a fórmula do anestésico usado na
época da ditadura.
Como é possível andar por aí fazendo de conta que nada está
acontecendo quando, em meio ao caos mais completo, o presidente fala que o
Brasil está "todo ajeitadinho"? Quando o presidente propõe uma
Constituinte sem justa causa (e ainda encontra respaldo entre formadores de
opinião para a sua "idéia genial")? Quando o presidente mente sem qualquer
pudor sempre que abre a boca -- e fica tudo por isso mesmo, porque,
afinal, todos já se conformaram com a farsa da traição sem traidores?
Como é possível fazer de conta que nada está acontecendo quando o
supremo mandatário da Nação, o nosso principal funcionário, encontra apoio
moral em José Sarney e Jader Barbalho, faz campanha para Newton Cardoso e
para Marcelo Crivella -- e continua contando com o apoio de gente que
antigamente era (ou se acreditava) de "esquerda"?!
Acho que estou sofrendo da mesma síndrome depressiva pós-Copa do João
Ubaldo. Não consigo achar mais nada "normal", nem na rua nem no
noticiário. Tudo fede, tudo está podre, tudo agride a quem ainda tem um
mínimo de sensibilidade e de noção daquilo que, antigamente, chamávamos de
"valores". Calçadas esburacadas e "gatos" em todos os postes da Zona Sul,
em tese uma área "nobre"; indulto para presos numa data comercial sem
qualquer relevância moral ou religiosa; São Paulo transformada em praça de
guerra; o Rio na mesma situação lastimável a que já nos habituamos.
Já nos habituamos?
Não, sinto muito, eu não consigo me habituar. Eu também quero uma
pílula azul para andar por aí fazendo de conta que nada está acontecendo,
para esquecer a corja a que estamos entregues, para parar de chorar de
raiva e de impotência pelo assassinato daquele pobre rapaz português que
viajava tão contente com os pais.
Quero uma pílula azul para perder a vontade de escrever para todo
mundo, AOS GRITOS: "Fujam daqui, não venham para cá, não ponham os pés
neste país sem lei, sem justiça, sem vergonha na cara!"
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