DESMOBILIZAÇÃO
DESMOBILIZAÇÃO
Disponibilizado no Monitor Mercantil Digital em 01/03/2007 e publicado no Monitor Mercantil de 02/03/2007, pág. 2 (Opinião).
IBERÊ MARIANO DA SILVA (*)
A desmobilização de uma força que volta de um conflito pode parecer simples, mas não é. Deve-se trabalhar em duas frentes bem diversas. A do material e a do pessoal.
A do material, logo após ser repatriada e antes de qualquer outra providência, deve ser descontaminada e desinfetada. Isto ocorre devido à possibilidade de o material importado (dentro dos contêineres, cabines das viaturas, pacotes, caixotes, embalagens etc.) ser portador de vetores novos hostis, de doenças que poderiam se propagar no país.
A manutenção do material, que normalmente pode ser preventiva (como a revisão que fazemos em nossos carros em concessionárias) ou corretivo (como a que fazemos quando ocorre um imprevisto), não se aplica. Deve-se fazer uma manutenção um pouco mais cara, que é a de “aprestamento”, ou seja, o retorno do material a uma situação de novo. Isto visa a dar a este material uma maior vida útil, caso seja necessário um novo emprego em situação tática.
A desmobilização de material é só questão de verba. Já a desmobilização do pessoal é muito mais complexa. Já no aeroporto ou porto, o pessoal é submetido a uma bateria de exames. Embora suas famílias estejam ansiosas por se reencontrar com seus entes queridos, é de bom alvitre que esta convivência só se torne plena com o resultado “nada consta” dos ditos exames. Isto se deve para não haver qualquer contaminação.
Ao mesmo tempo, a segunda seção médica faz uma entrevista com cada um dos combatentes, para ter a informação relativa aos locais em que cada um esteve. Isto facilita a separação por grupos e a procura de possíveis causas de efeitos coletivos não desejados. A segunda seção médica deve ter ainda, em seus bancos de dados, informações bem definidas sobre o destino preciso de cada indivíduo, para acompanhá-los e fazer o “recall” em caso de doenças latentes, que poderiam se manifestar mais tarde.
Até agora só tratamos do estado físico. Um fator muito mais importante é o estado psicológico de cada combatente. É uma espécie de volta à calma, um retorno à tranqüilidade, uma reintegração plena ao resto da população.
É um fator que deve ser levado em conta sempre que o indivíduo voltar de uma situação anormal, ou seja: treinamentos intensivos de forças especiais, combatentes com instrução mais aguerrida, prisioneiros, indivíduos com convivência diária em região de conflitos, desordens públicas ou abandono governamental etc.
Quanto mais jovem for o indivíduo, maior deve ser a reeducação para a plena reintegração à sociedade. Falamos de um acompanhamento psicológico intensivo e tratamento. Esta reintegração é facilitada, para aqueles que têm uma firme formação religiosa.
O estado mental, em uma zona de conflito ou de anormalidade, só bem pode ser plenamente entendido por quem já enfrentou ou conviveu bem de perto com este tipo de situação.
Em Angola, existia na parede do batalhão de infantaria brasileiro (Brabat) uma frase que representa bem o estado de espírito a que me refiro: “À beira da morte contando com a sorte”. Para alguns locais do Brasil, bem poderíamos parodiar: “À beira de um assalto contando com a sorte”. É um misto de medo, de angustia, insegurança e impotência.
A volta de um ambiente em que a vida e a morte são meros detalhes, em que vale o matar para não morrer, em que você praticamente tem a permissão para matar, traz tremendos traumas.
Olhando países em conflito, principalmente aquele em que seus combatentes mais letrados não estão bem convencidos da real razão de estar naquele campo de batalha, verifica-se que problemas profundos têm uma grande probabilidade de vir a acontecer, no caso de uma desmobilização mal feita. Num dia ele pode matar o “inimigo” e no dia seguinte, após um vôo, já em sua terra natal, ele tem que estar integrado em sua sociedade.
Pais com tensões educarão mal os filhos e desentendimentos com seus consortes advirão. Poderá haver problemas de entrosamento dos filhos em colégios e universidades com mau rendimento escolar. Existirá a possibilidade de o pai ou o filho se tornar um franco atirador, cometer suicídio, enfrentar rejeição pelo seu antigo círculo de amigos, enfim não conseguir uma plena integração à sociedade, tornando-se uma ameaça a esta.
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(*) General-de-brigada engenheiro militar do Exército Brasileiro, na reserva.
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