Reportagem do Correio/Estado de Minas obtém cópia da obra sigilosa que a Força produziu há 19 anos para contar sua versão da luta armada: 1,7 mil pessoas são citadas
1) Trechos do livro foram copiados de documentos secretos do próprio Exército. Um caso concreto: nas páginas 721 e 722, está escrito: “A localidade de Santa Cruz, por exemplo, dista 600 km da sede do município, em Conceição do Araguaia, e a única ligação existente entre elas é o rio, demorando a viagem entre uma localidade e outra uma média de 5 dias”. Texto praticamente idêntico aparece em documento do Exército de 30 de outubro de 1972, classificado como secreto: “(…) A localidade de Santa Cruz dista 600 km da sede do município em Conceição do Araguaia e a viagem pelo rio, único meio de ligação, demora da ordem (sic) de 5 dias”.
2) Outros trechos do livro — como o relato do seqüestro do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, em 1970 — são cópias ou adaptações de textos publicados no site do grupo do Ternuma (www.ternuma.com.br), guardião da obra.
3) Consultadas pelo Correio/Estado de Minas, pessoas citadas no livro — entre elas Cid Queiroz Benjamim e Maurício Paiva, que participaram da luta armada — apontam erros e manipulações na obra, mas confirmam a veracidade de inúmeros detalhes, que ainda não são de conhecimento público.
4) Um oficial do Exército que possui um exemplar do livro confirmou que a cópia em poder da reportagem é autêntica.
Durante dois meses, o Correio/Estado de Minas confrontou o conteúdo do livro secreto do Exército com outras 12 obras de referência histórica e com dezenas de documentos das Forças Armadas. Também entrevistou 32 pessoas envolvidas direta ou indiretamente com os fatos narrados. O resultado do trabalho começa a ser publicado a partir de hoje numa série de reportagens especiais. O Livro negro do terrorismo no Brasil agora faz parte da história.
Cronologia do projeto Orvil
1985
José Sarney toma posse na Presidência, pondo fim a 21 anos de ditadura militar. No mesmo ano, a Arquidiocese de São Paulo lança o livro Brasil: nunca mais, com relatos de tortura e assassinato de presos políticos ocorridos durante a ditadura.
1986
Para responder ao Brasil: nunca mais, o ministro Leônidas Pires (Exército) manda o serviço secreto da Força produzir um livro com a versão dos militares para a luta armada. Inicia-se assim o Projeto Orvil (a palavra livro ao contrário).
1988
O livro do Exército fica pronto e é batizado com o título As tentativas de tomada do poder. Leônidas (foto), contudo, volta atrás e decide não publicá-lo. O documento então passa a circular entre militares da reserva rebatizado de Livro negro do terrorismo no Brasil.
2000
Integrantes do grupo de extrema direita Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), que reúne militares e civis, têm acesso ao livro e colocam na internet cerca de 40 páginas da obra. Não informam, porém, a origem dos textos.
2007
O Correio/Estado de Minas obtém uma cópia do livro. Com 966 páginas, o documento cita mais de 1,7 mil pessoas ligadas a organizações de esquerda, muitas delas ainda em atividade.
Com 51 páginas, dedicadas a ele, o campeão de citações no livro secreto é Carlos Lamarca, o capitão do Exército que desertou em 1969 para tentar fazer a revolução socialista no Brasil.
Em segundo lugar, com 41 páginas, vem Carlos Marighella, o veterano comunista que, no final da década de 1960, se tornou ícone da guerrilha urbana no país.
Livro era uma arma, diz general
Leônidas Pires Gonçalves, que mandou fazer o “livro negro” quando comandou o Exército, afirma que a obra foi engavetada em 1988 para ser usada, no futuro, em caso de “necessidade” dos militares
“Eu disse ao (José) Sarney: ‘Eu fiz esse livro. É uma arma que eu tenho na mão’.” Às vésperas de completar 86 anos, saudável e com a memória preservada, o general da reserva Leônidas Pires Gonçalves relembra, em entrevista ao Correio/Estado de Minas, o dia em que, na condição de ministro do Exército, se reuniu com o presidente da República para discutir o que fazer com a versão oficial dos militares para a luta armada que o serviço secreto do Exército acabara de concluir. “Falei para o Sarney que não ia publicar o livro. Para que criar um problema que não existe?”, recorda Leônidas. “Esse livro”, concluiu o general na conversa com o presidente, “fica como um documento, que nós (militares) podemos ter a necessidade (de divulgar) no futuro.” De acordo com Leônidas, Sarney concordou e ambos deram o caso por encerrado.
Quais seriam as “necessidades” a que se refere Leônidas? É o próprio general quem explica: atos de “revanchismo” contra as Forças Armadas por parte de “quem perdeu a guerra”. “Naquele tempo (em que o livro foi feito), não havia o que acontece agora, um revanchismo sem propósito”, afirma ele. “No meu período como ministro (1985-90), não houve nenhum problema dessa natureza, essas ‘mães não-sei-do-quê’, (grupos do tipo) Tortura: nunca mais.”
Leônidas confirma que partiu dele a ordem para fazer o livro. Diz, porém, que não ficou com nenhum exemplar. “O livro foi feito pelo CIE (Centro de Informações do Exército, serviço secreto da Força) com base nos documentos que o órgão dispunha”, afirma. O general é categórico ao comentar a suposta destruição de documentos do CIE, que, segundo vem argumentando o Exército nos últimos anos, impediria a divulgação de informações referentes ao combate às guerrilhas urbana e rural nas décadas de 1960 e 1970: “Foram queimados coisa nenhuma”.
Na opinião de Leônidas, o Exército não tinha a obrigação de mostrar o “livro negro” a ninguém, já que a obra não foi publicada. “Isso é passado. Vamos olhar para frente”, sugeriu. O general critica os guerrilheiros do Araguaia — “A pergunta é: o que eles estavam fazendo lá? Fazendo um enclave, que é uma coisa lesa-pátria. O resto é conversa fiada” —, critica antigos companheiros de desaparecidos políticos — “Nós cuidamos dos nossos mortos. Eles deviam ter cuidado dos mortos deles” — e critica também os familiares — “Por que não perguntam o que seus filhos estavam fazendo lá? Por que não perguntam se mereciam ou não mereciam, na luta, serem mortos?”
Ainda em relação ao Araguaia, Leônidas chama de “guerra” o enfrentamento que ocorreu entre as Forças Armadas e os guerrilheiros do PCdoB. “O que resulta de guerra? Morte. Essas coisas são conseqüências muito naturais. Eles (os grupos de esquerda que participaram da luta armada) perderam a guerra e agora querem ganhar no tapetão”, afirma. De acordo com ele, o número de ativistas políticos de esquerda mortos durante o regime militar — cerca de 350 — foi até pequeno se comparado ao que aconteceu nas ditaduras do Chile, 3 mil mortos, e Argentina, 30 mil mortos. “Nossa vitória, do ponto de vista de (perda de) vidas humanas, foi muito sóbria.” Por fim, conclui: “Na guerra só há uma coisa bonita: a vitória. O resto não é bonito”.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home